Sincronicidades

Um belo dia, eu invadi minha própria casa. Quer dizer, deixe-me explicar melhor: eu invadi minha antiga casa, a mesma que eu abandonei tentando me livrar das amarras das lembranças que me corroíam, me enfraqueciam, me adoeciam.

Eu saí de lá porque ela nunca passou de uma casa e eu queria muito encontrar o meu verdadeiro lar, mas, no momento da minha partida, como consequência, deixei para trás partes da minha história que eu não teria como recuperar.

A casa estava trancada há algum tempo, sendo consumida pelas areias da ampulheta, e eu sabia que precisava entrar lá uma última vez e resgatar alguma parte da minha alma que havia se perdido. Eu precisava tocar uma última vez naquelas paredes e sentir a energia do ambiente que quase me destruiu, mas também me proporcionou momentos inesquecíveis.

E assim eu fiz. Era dia 21 de agosto de 2012 quando eu fui até um chaveiro e disse que havia acabado de chegar de uma viagem e perdido minha chave. Paguei pelos seus serviços e ele abriu a porta que me levaria de volta ao meu passado.

Quando a porta foi aberta, eu passei pela cozinha em que tantas vezes eu untei a forma do bolo de coco que minha mãe fazia, especialidade da casa. Cozinha em que tantas vezes eu fiquei esperando as rabanadas ficarem prontas no natal. Cozinha em que eu fazia o café todas as tardes.

A sala estava vazia: os móveis ainda estavam ali, mas faltava a vida. Os retratos que ainda estavam pendurados na parede contavam a história de uma família que havia existido, como os museus nos contam sobre nossos antepassados.

Meu quarto lilás que fora palco de tantos sonhos e apresentações, tantas histórias que criei com minha imaginação, continuava intacto: meus bichinhos de pelúcia estavam cobertos de poeira, mas ainda me faziam recordar de todas as vezes que eu não conseguia dormir de madrugada e ficava olhando para eles, todos enfileirados na prateleira marfim, até pegar no sono.

Mas, somente quando cheguei no quarto que pertenceu à minha mãe, eu sofri o impacto: os móveis já estavam desmontados. Aquilo que um dia fora um local de descanso em que rezas silenciosas ecoavam pelas paredes, havia se transformado numa bagunça de madeiras desmontadas e memórias acumuladas. Notei uma pasta amarela largada no chão, perto de umas sacolas, os papéis saltando para fora, pedindo para serem encontrados.

Eu os encontrei. Eram escritos da minha mãe, poesias, que eu não tinha conhecimento da existência. Pra ser bem sincera, eu não tive muito tempo para conhecê-la como mulher: conheço sua versão como mãe e ela foi a melhor de todas, mas não fazia ideia da natureza singular e autêntica de seus textos.

Eu sabia que ela escrevia. Ela sempre soube que eu seguiria os mesmos passos. Mas, quando eu comecei de fato a escrever e descrever sentimentos, ela não estava aqui para ler e compartilhar suas ideias a respeito dos meus inúmeros questionamentos sobre a vida.

Só que, para a minha surpresa, seus textos eram assustadoramente iguais aos meus. A mesma essência, as mesmas dúvidas e inquietações. E a primeira página na qual eu toquei, tinha sido escrita em 21 de agosto de 1992. O texto? Se chama “Tempo”.

É irônico como 20 anos podem separar os destinos de mãe e filha e ainda assim, cruzá-los. Mais irônico ainda que a vida use destas sincronicidades para nos dizer que o tempo é realmente o senhor de todas as coisas.

Por algum motivo, aqueles textos deveriam me pertencer, e eu digo isso com certeza absoluta pois menos de um mês depois da minha sutil invasão, um vendaval de mudanças passou por aquele que deveria ter sido o meu lar e se livrou de quase tudo que ainda restava. Os retalhos da minha casa foram para o lixo.

Mas eu salvei aqueles textos. Ou eles me salvaram, não sei dizer ao certo. Todo o resto tinha que ser varrido para longe de mim, ainda que me doesse, mas aquelas palavras da jovem mulher que viria a ser minha mãe precisavam ficar.

Anos se passaram desde esse episódio, mas de vez em quando eu ainda me lembro com ternura das lágrimas que rolaram de mim naquele dia: elas regaram minhas raízes e me deram a certeza de que o acaso não existe e algumas coisas são predestinadas.

Não existe explicação para o que é inexplicável, ainda que seja difícil mergulhar no desconhecido.

E este não era pra ser um texto sentimental, mas se não fosse, teria graça? Às vezes as coisas fogem do controle, mas tudo bem, vou esperar que o tempo, em toda sua magnitude, me prepare outras surpresas. Enquanto isso, eu vou transbordando minhas vivências por aí.

Me acompanhe também no instagram @capituestaderessaca. Conheça meu primeiro livro de poesias, o “Tudo aquilo que eu nunca disse“, disponível em versão e-book via amazon.

4 comentários

  1. https://leer.amazon.com.mx/kp/embed?asin=B07FYK8524&preview=newtab&linkCode=kpe&ref_=cm_sw_r_kb_dp_2JQVBPFVWHQBG2AXK58E He leído los primeros poemas de tu libro, Priscilla y me parecen fascinantes, igual que tu blog. Saludo desde México

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  2. Lunna Guedes disse:

    Fiquei a pensar em como seria regressar a minha casa, a da minha infância… eu já estive lá algumas vezes nesses anos todos. Mas, nesse momento impossível, não sei como me sentiria. Como ando sentimental, creio que seria difícil ou não…
    Gostei imenso de vosso texto… viajei

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  3. F. Pereira disse:

    “E este não era pra ser um texto sentimental”? Difícil quando se trata de um texto seu, você sempre tão sentimental com suas palavras, independente do conteúdo. E é incrível como vejo, pelo pouco que conheço de ti, semelhanças com sua mãe.
    Que o tempo siga proporcionando boas surpresas para ti, tal como me surpreendeu ao encontrar seus textos tão intensos.

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